por Fernanda Castilho
ilustração: Lucas Borges
Há tempos me percebo apegada num recurso do Instagram. É simples: quero criar um story e escolho a opção “Nesta data”. Então, vejo todas as publicações que fiz na mesma data em outros anos. Fica tudo ali, guardadinho e organizado naquela conta. Posso acessar a qualquer instante e me lembrar o que estava fazendo naquele dia a partir de alguma antiga publicação. Posso lembrar o que estava acontecendo e o que eu estava sentindo.
Além dessa opção, dá para rolar pelos arquivos de stories e ver cada um deles, cada um que postei depois que comecei a usar o recurso. Com as fotos da rua movimentada tiradas da janela do Cine-Theatro Central, relembro o quanto me sentia feliz de estar ali, trabalhando no coração da cidade. Relembro também que num dia triste de maio de 2018, no qual tive uma hemorragia, postei uma foto sorrindo porque queria fingir que tudo estava bem. Vendo os stories da última vez que fui a São Paulo, lembro do show da Courtney Barnett no Fabrique, dos ensaios e do show das meninas no Breve, de me perder andando pela Vila Madalena mas lembrar que por lá tem uma rua chamada Purpurina. Também posso me lembrar da tarde em que um amigo e eu fomos até a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, ele criou sua ficha e pegou um livro emprestado. Que livro era? Isso escapa à minha memória. Tiramos uma foto no corredor e na saída peguei um exemplar de uma edição antiga da revista Serrote. Nesta edição, que data de quase 8 anos atrás, publicaram um ensaio da Joan Didion com o título de “Sobre ter um caderno de anotações”, que trazia imagens dos cadernos de Ana Cristina Cesar. Acho que depois disso tentei me dedicar a um diário.
Toda essa mania de checar as memórias começou em março de 2019, pelo que me lembro. Depois de passar por um grande corte, uma mudança dolorosa e lancinante, nada voltaria a ser como era antes. Num trecho de uma música, Luiza Lian canta que: “a morte faz um risco na retina como a faca de Buñuel/ E os olhos se regeneram mas o trauma do corte/ Refaz seu movimento num eco fantasma”. Quando a ouço lembro desses cortes.
Perder a amizade de alguém que amamos, ou mesmo nos afastar por um tempo para ver se depois dá certo novamente – como no poema da Ana Martins Marques que diz: Amar/ profundamente/ mas testar/ volta e meia/ se ainda/ dá pé -, também é um tipo de morte, e sofremos com o luto. Luto pela ausência de alguém que está vivo e respira.
Só consegui compreender a angústia que me acometia em todos aqueles dias quase um ano mais tarde, em 2020, ao ler O ano do pensamento mágico, em que a mesma autora do ensaio da revista Serrote diz que a perda de alguém pode perturbar a mente e que “a pessoa que experimenta o luto está na verdade doente”. Logo, eu estava doente, com febre, com saudade daqueles dias, daquelas pessoas.
Enquanto escrevo, percebo que esse hábito de buscar e voltar às lembranças pelos recursos das redes sociais se tornou um vício. Afinal, o que me resta é lembrar, já que estamos há mais de um ano trancafiados. Lembrar das noites de shows, dos encontros com os amigos, das tardes na biblioteca, das aulas à noite. Enfim, lembrar de como era.
Um dia, eu e dois amigos estávamos no corredor da faculdade, antes de uma sessão do cineclube começar, conversando sobre ter ou não ter um perfil no Instagram, ou será que era sobre a excessiva exposição da vida privada? Na verdade, não sei ao certo. Estou aqui testando a memória. Sei que a discussão girava em torno do Instagram e me lembro da minha amiga, toda vestida de preto, sentada naquele pequeno murinho, dizendo que, para ela, essa rede funcionava como um diário.
Para mim, o Instagram também tem sido como um diário. Um diário diferente daquele que tento escrever no caderninho de capa dura verde escuro com uma fita de cetim como marcador de página. Enquanto um é privado e escrito com caneta, rabiscado, um esboço, o outro é público e visual, com fragmentos, memes, vídeos de gatos, músicas, e manifestações de indignação com a política.
Esse diário, com fotografias e vídeos, que crio e compartilho, me faz retornar aos caminhos atravessados e a quem fui noutros tempos. Como Joan conta em seu ensaio sobre os caderninhos, ao folhear aquelas páginas que ela mesma escreveu, podia se lembrar de como se sentia e de como era ser ela naquele momento passado. Conta também que, mesmo tendo se perdido de quem um dia foi, era preciso às vezes retornar e retomar o contato. De modo, penso eu, que possamos lembrar de quem não mais queremos ser, de quais novos caminhos traçar. Lembrar de que apesar do corte, vale o remendo.