O último dia do bar Redentor: os 33 anos do curta-documentário

por Daniel Couto

1987. No mesmo ano em que este que vos escreve vinha ao mundo, um grupo de amigos produzia um dos documentários mais legais já filmados na nossa querida Manchester: “O último dia do bar Redentor”.

Os tempos eram de efervescência cultural e de expansão imobiliária da cidade. Enquanto jovens de todos os cantos do país chegavam na UFJF em busca do tão sonhado diploma, o centro da cidade ganhava contornos cada vez mais verticais. Entre casas demolidas e prédios erguidos, um dos últimos bastiões da boemia, dos causos e do bom e velho espírito etílico carijó, era o bar Redentor.

Situado na esquina da rua Espirito Santo com a Av. Rio Branco – espaço hoje ocupado pelo Edifício Alber Ganimi, o “prédio mais alto da cidade” – o Redentor foi reduto de toda sorte de gente que se pode reunir em torno de uma boa cerveja gelada. De cachaceiros profissionais a estudantes em busca de um encontro, passaram pelo bar membros do movimento punk, e, por que não, pessoas comuns procurando o alento da mesa de bar.

Entre as pessoas que o Redentor ajudou a tirar do seio da família e colocar na teta da boemia, estava o cineasta e escritor José Santos. Frequentador do boteco entre uma aula e outra da Faculdade de Comunicação da UFJF, José é quem assina a direção do filme sobre o finado bar. Produzido pela turma da produtora Bem-te-vídeo, da qual José fazia parte, o curta apresenta aos espectadores mais que um registro do Redentor. A obra é  também a fotografia de uma época e uma cidade que ficou pelo tempo. E é com a ajuda do próprio José Santos que contamos essa história.

“Fora desse bar, o mundo é mudo”. 

Tudo começou quando a turma da produtora, José Santos, Mauro Pianta, Alexandre Cunha e a amiga Vanessa Esteves, ficaram sabendo do fechamento do Redentor. Foi a motivação que precisavam para documentar a extinção do estabelecimento e colocar em voga o debate da especulação imobiliária. Munidos de uma câmera plugada a um VT VHS, um microfone de mão e boas doses de improviso, as gravações aconteceram em dois dias espaçados por mais de um mês de hiato.

“Na época nós já tínhamos uma produtora, a ‘Bem-te-vídeo’. Fazíamos um pouco de tudo para viver, principalmente eventos saciais. Mas nosso sonho sempre foi fazer algo autoral. Ficamos sabendo que o bar ia fechar e, como éramos frequentadores,  decidimos fazer o filme. As filmagens no Redentor foram feitas no sábado em que o bar foi fechado e, alguns meses depois, gravamos a cena de encerramento com os remanescentes do Redentor”, conta o diretor do filme.

Entre imagens da Juiz de Fora dos anos 80 e do cotidiano do bar,  questionamentos são feitos aos frequentadores no melhor estilo ‘cinema-verdade’. O documentário é entrecortado por desenhos e charges do cartunista Belo, vírgulas sonoras, imagens estilizadas, fotografias de Humberto Nicoline e Lucinha Baião,  além de muita cantoria dos personagens. Destaque para a participação do anônimo que procura seu irmão Geraldo (ou seria Pires?) que, após rodar 21 países, esperava encontrar o consanguíneo no Redentor.

Frequentador do Redentor desabafa para a câmera sua busca incansável pelo irmão

“O contexto do Redentor era isso: muita maluquice. Era um ponto de encontro, pessoas utilizavam o telefone do bar para deixar recado… tinha de tudo. Queríamos mostrar aquela farra e, como tínhamos poucos recursos, decidimos experimentar novas linguagens. O Belo tinha feito algumas caricaturas muito legais e decidimos usá-las no filme como alívio cômico. Lembro do Belo ter feito uma brincadeira pra gente: ele desenhou o Daltermar Lima (radialista, publicitário e boêmio da época) de perfil, com um braço móvel. Com a técnica de quadro-a-quadro, conseguimos animá-lo, fazendo-o tomar um golinho de cerveja”, lembra Santos.

“Quando se fecha um bar, fecha-se uma porta no céu. Quando se abre um banco, abre-se um porta no inferno”.

“- Por que os bares estão acabando?”
“- Será que isso é progresso?”

Essas eram algumas das perguntas feitas aos personagens entre um gole e outro de cerveja. As respostas? As mais variadas possíveis.

“ -A propriedade privada é um golpe! No mínimo um roubo de memória”, conta um entrevistado.

Da utopia comunista jovial às lembranças mais afetivas, um jovem se destaca por fazer oposição aos demais. Francisco Pimenta – na época estudante, hoje professor universitário – defende o fechamento do Redentor. “Preservar prédio velho é coisa de reacionário”, afirma. Quando perguntado sobre o posicionamento de Chico, José Santos vê com bons olhos o comentário: “O Chico é um cara progressista. Ele adorava uma provocação e a sua fala foi nesse contexto. Ele irritou muita gente com sua ironia e nos ajudou a dar um contraponto legal no filme”.

Chico Pimenta: a voz dissonante do Redentor

Encerrando o primeiro ato do filme, temos o cair da noite e as portas do bar que se fecham. Em paralelo, os frequentadores cantam em tom de deboche o jingle da construtora responsável pela obra que daria lugar ao Redentor.

E é com a alegria da cerveja e a tristeza pelo fechamento do bar que temos o encerramento do filme como uma das cenas mais marcantes: uma avenida Rio Branco vazia. Nela, uma mesa figura em uma das pistas laterais da via. Cantando e bebendo estão os remanescentes órfãos do bar. Ao fundo, o Redentor escondido pelos tapumes da obra já iniciada.

“Demoramos mais de um mês para conseguir a liberação para esta cena. Conseguimos que o trânsito fosse impedido para que um bando de cachaceiros pudesse se despedir do bar. Me lembro que era sábado, ainda pela manhã, então não tinha todo aquele trânsito que temos hoje. Foi tudo cronometrado. Foi uma curtição ter a polícia fechando a avenida pra gente ficar ali bebendo”, ri.

Remanescentes do Redentor brindam ao fechamento do bar

Com o material em mãos, a equipe partiu para o Rio de Janeiro onde foi realizada o processo de montagem e finalização do curta. Quem cedeu a ilha de edição foi uma amiga do grupo, Patrícia Frazão. Foram dias para selecionar os melhores planos e depoimentos entre horas de material bruto e todos os inserts que os realizadores queriam experimentar.

“Hoje em dia você edita em casa, no seu próprio micro. A gente não tinha ilha, então tivemos que ir para o Rio de Janeiro. Foi tudo muito calculado. A gente estimava que, para cada minuto de filme, precisaríamos de uma hora de edição. Acabou demorando um pouco mais que isso”, lembra.

Após finalizado, o filme circulou por festivais em algumas cidades do Brasil, além de exibições esporádicas seguidas de debate. O último dia do bar redentor foi premiado em festivais nas cidades de Belo Horizonte e São Luís do Maranhão. Hoje o curta já conta com mais de 14 mil visualizações no Youtube, distribuídas em três diferentes canais. O diretor desconhece quem tenha digitalizado e publicado o vídeo, mas agradece a todos os divulgadores: “É um direito autoral coletivo”, afirma.

Em 1989 a Bem-te-Vídeo se dissolveu deixando como legado, além do Redentor, diversos eventos sociais e ainda dois pequenos curtas (realizados em parceria com a SET Produções)  ilustrando dois poemas de Murilo Mendes: ‘O Imperador’ e ‘Grafito para Eisenstein’. Já em terras paulistas, onde reside atualmente, José Santos produziu outros  documentários como o Viaduto do Chá, Carta a Cuba / Carta ao Brasil (fruto do seu ano sabático na terra de Fidel), além ter sido fundador e diretor do Museu da Pessoa.

Atualmente José Santos se dedica a literatura, tendo publicado diversos livros infanto-juvenis no Brasil e outros países.

Perguntado sobre sua relação com a cidade e os membros da antiga equipe, José nos conta que ainda mantém contato com muitos dos amigos através de um grupo de WhatsApp. Com a cidade, a relação permanece intensa. Em tempos sem pandemia, confessa que vem a Juiz de Fora para gastar a “cota de colesterol do mês comendo um torresminho no Bar do Bigode”. Como encerramento, José Santos deixa um recado aos leitores do Baixo Centro:

“A questão técnica é importante e deve ser considerada. Mas temos sempre que levar em conta o lado improvisador, o lado que vai além da possibilidade técnica. Se não fosse esse espírito mais ousado, não teríamos feito o Redentor. Não tínhamos recurso. 30 anos depois estou aqui dando uma entrevista pra você sobre um filme feito em VHS, mas que resistiu até hoje não pela sua técnica, mas, acima de tudo, pelo seu apelo emocional”.

P.S: Pra quem se interessa pela história boêmia de Juiz de Fora, durante o trabalho para esta reportagem nos deparamos com uma série de imagens do antigo bar “Milk Shake”, contemporâneo do Redentor. Clique aqui para assistir.

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