Em uma cobertura do Bom Pastor, matilha de fetichistas se reúne para viver e comer como animais.
por Cappo Bianco e Fidalgo Cruz
Juiz de Fora é uma cidade conhecida na cena de swing nacional e, antes da pandemia, conseguimos participar, como jornalistas, de um encontro de casais liberais.O que era pra ser uma reportagem sobre o amor livre, se desdobrou em um encontro extra-acordado, em um ambiente mais restrito. Após turbulentos dois anos negociando essa publicação, aqui está nossa reportagem, revista e censurada inúmeras vezes por seus personagens.
Juiz de Fora, maio de 2019
Às 19:30 chegamos a um luxuoso apartamento no bairro Bom Pastor, rapidamente nossa entrada foi liberada depois de dizer, discretamente, o código combinado para o porteiro. Subimos pelo elevador de serviço até a cobertura, com cerca de 300 m2, ricamente decorada numa temática que transita entre o noveau-riche e neo-neo-clássico. No hall de entrada fomos conduzidos para uma espécie de camarim, de onde saímos como duas ovelhas. Nós, como convidados, recebemos as únicas “fantasias” não caninas. A escolha das raças de cachorro, como percebemos depois, representava tanto a disposição para as atividades quanto a personalidade dos participantes.
Nosso cosplay nos preservou das abordagens mais ferozes e a primeira interação aconteceu com um casal de dóceis bacês. Você já conversou com alguém disfarçado de outra coisa em algum halloween na sua vida, mas nunca foi lambido de surpresa por uma mulher no corpo da raça mais simpática que a propaganda explorou.
Pipoca, a filhote lambuzada e Pimpolho, o filhote insaciável, frequentavam o jantar há dois anos. Na vida humana, Pimpolho desenvolve aplicações para dispositivos inteligentes e Pipoca agenda procedimentos estéticos em uma clínica. Um casal sadio e torneado em academias, que, após alguns drinks, avançaram em duas dálmatas que se pegavam no sofá.
Próximo a janela, na área de fumantes, uma matilha multiracial compartilhava charutos e cigarros aromatizados. Ao fundo, um distinto senhor japonês, de cara limpa, trajando somente um suspensório de pelúcia, abocanhou um apetitoso fêmur bovino.
A entrada foi servida na ante-sala, um estiloso rebaixamento de piso decorado no estilo animal print. Alguns convidados anteciparam nossa curiosidade fetichista, e comeram os petiscos sem usar as mãos, sob quatro patas, lambendo o mármore da mesa de centro.
Fomos conduzidos pela anfitriã, Laika, espremida num látex visivelmente de qualidade superior, até a mesa de jantar. A cada passo em direção ao centro do apartamento, o clima de tensão sexual temperada com pêlos molhados aumentava, até o clímax, quando boa parte dos participantes, de quatro, devorava uma espécie de nuts para cachorro, em comedouros metálicos, e outros cheiravam bundas.
Erotismo e gastronomia levados às profundezas do mundo animal. Decidimos beber alguns drinks para descontrair. O ap. dispunha de um bar bem caprichado com toda sorte de bebidas e insumos, escolhemos uísque. O clima De Olhos Bem fechados com Silêncio dos Inocentes acabara de se transformar em 120 Dias de Sodoma.
O respeito que imperava enquanto bípedes desapareceu quando assumimos a postura canina, com o ânus à mostra e as primeiras cheiradas e lambidas começaram a surtir efeito.
Antes da ceia, Laika pediu a palavra e proferiu o manifesto do Grupo Doberman: “Comida de cachorro é tão saborosa como caviar [uma das iguarias mais caras do mundo, feito das ovas não fertilizadas do esturjão] ou, ainda, do mais nobre foie gras francês [literalmente a cirrose induzida do ganço]. Estamos aqui como animais livres e com todo o direito de viver nossos instintos”. Após o manifesto, um balé de garçons musculosos, oleosos e com máscaras de doberman trouxeram os patês premium sabor javali.
O sexo, apesar do clima swing BDSM, não era o objetivo principal. Lambidas, latidos, cheiradas e até mordidas estavam liberadas em qualquer um dos participantes na posição correta. Tivemos a sorte de observar algumas cruzas que, de acordo com um simpático grupo de poodles, não acontece sempre..
O Grupo Doberman opera com uma hierarquia rígida e organizada, mas diferente da cultura sadomasoquista, não existe submissão pois todos são cães. Foi um encontro singular que vai deixar saudades.
Os seres humanos se distanciaram do mundo animal no cânone civilizatório judaico-cristão e esse momento apresenta uma alternativa de conexão com os instintos selvagens, de uma forma não humana. O Grupo Doberman nos colocou de volta no planeta, nos lembrando que não somos nada além de animais.