Do Arpex à Mimosa

por Cappo Bianco e Fidalgo Cruz

_arpex

Churrasco, isopor, funk, caixas bluetooth, famílias, jovens e nenhum cachorro curtiam a madrugada no arpoador.

Após alguns jacarezinhos frustrados na água preta prateada, uma garrafa de gim rapidamente se transformou em uma pet cheia de mijo, na saída da praia, com um blend de três DNA’s diferentes, intensamente amarelada, de espuma viscosa, largada com civilidade em frente ao apartamento de sala ampla, de belíssimo light design em um majestoso prédio “modernista” de frente pro mar.

Inebriados pela maresia boêmia brisada de qualquer região do Rio de Janeiro, com um clima de certa sexualidade reprimida, meio sem motivo, alguns drinks e vontade de cheirar cocaína, decidimos nos encaminhar para a Vila Mimosa, point clássico dos aficcionados por sexo pago. A promessa de um agito permeado por acompanhantes e drogas soava imperdível.

O desenrolo carioca começou quando decidimos pedir um uber em frente ao fasano, mas não sem antes um vagabundo tentar entrar no restaurante.

Quando chegamos no flamengo, os bancos da viatura estavam úmidos e crocantes, deixando no ar uma sensação de dívida com o motorista. Já eram três da madrugada e no largo do machado os ratos faziam a festa em frente às péssimas galeterias. A ideia de conhecer a Vila Mimosa soou bastante excitante sob a perspectiva antropológica, e o clima de diversão ficou para trás.

Parte da aventura, consideramos como propósito, consistia em conseguir informações com os típicos habitantes humanos da madrugada, interrompemos uma emocionante partida de baralho para comprar um latão morno. A má vontade do dono da banca, com as cartas nas mãos, era um prólogo manjado quando se fala em atendimento na cidade maravilhosa. Conseguimos quebrar o gelo quando perguntamos se ainda “tava rolando” na Vila Mimosa.

– hoje é sábado, tá bombando!

No carro até a Vila Mimosa só tínhamos em mente projeções virtuais formuladas a partir de histórias contadas por amigos simpatizantes daquele tipo de diversão, incluindo um que se perdeu por três dias no “paraíso”. O motorista não parecia muito excitado em levar dois bostas interessados no seu ofício, mas ele aguentou algumas perguntas. A única pepita de fofoca era a treta entre taxistas e ubers na Vila (desde os primórdios controlada pela máfia dos amarelos).

_isso não é um safari humano

Prédios baixos de dois andares em média, com indícios de um incêndio recente, povoavam uma rua estreita de asfalto esburacado, acumulando poças de água barrenta, com grande movimentação de carros e transeuntes, trabalhadoras e clientes.

Ao chegar na Vila, fomos arremessados numa pororoca chamada brazil . Um mix de boemia narcótica com tensão e ansiedade sexual xula. Nada de modelos, dessas comuns em casas de shows para adultos, que parecem grandes frangos siliconados e bronzeados. Lá as mulheres são naturais e transitam com o mínimo de roupa possível, algumas jogavam sinuca de calcinha e sutiã, mescla tentadora de dois fetiches – lingerie e azar.

Iniciamos as abordagens na galeria recomenda pelo motorista, “o melhor da Vila”. Cheiros deselegantes de porra e vômito, somados à sensação de ter o pé colando no chão, elucidaram a insalubridade do local. Diversas lojas e bares – ou puteiros – preenchiam o quadrante comercial, como um prédio de negócios no centro decadente de uma cidade mal planejada. Pequenas vendas com utensílios apropriados – ou não – ofertam lenços umedecidos, camisinhas, pilhas e super bonder.

Na Vila Mimosa, o dinheiro é corrente e os preços oscilam de acordo com a forma de pagamento – iniciativa que favorece o giro local mas não isenta as operadoras de cartão de crédito do lucro certo.

– quanto é o latão?
– 8 reais no dinheiro, 10 no cartão
– me vê um de brahma por favor

Bebida em mãos e já era hora de ressecar a mucosa. Na primeira abordagem, próximo a uma mesa de sinuca, um jovem nos respondeu com bastante hostilidade, pavimentado em um eloquente sarcasmo de cunho racial narco-homofóbico:

– Você acha que eu cheiro branco?
– Quem cheira branco termina cheirando piroca.

É de se imaginar que onde transitam bondes de garotas de programa armadas até o talo de sedução, cocaína seria uma droga consumida pelas garotas e não pelos rapazes. Nos apresentamos para duas mulheres seminuas na porta de um bordel vazio. A forma que nos deixou mais confortável (e eduardo coutinho) para entrevistá-las foi pagando pelo programa.

Cento e sessenta reais foi o preço de duas mães negras, que estavam ali por motivos estritamente econômicos, massacradas pelo grande engenho brasileiro de mazela social. Antes de subir, elas rubricaram um caderno, gentilmente cedido pela gerente obesa do lugar. A porcentagem da casa não foi divulgada.

_isso não é um programa

No chão do quarto uma coleção monstruosa de preservativos usados, condições já presumidas após uma mijada numa pocilga onde garotas urinavam de cócoras no ralo. O colchonete marrom encapado por uma napa ressecada de tom bordô estava retalhado pela fricção corporal de décadas de meteção. Um dos quartos não tinha ar-condicionado, alertando os hipoglicêmicos sobre possíveis riscos de queda de pressão e obstruções coronarianas nos cardíacos mais viris.

O objetivo não era sexo, mas pesquisa e sincericídio, e nossa conversa foi embalada por uma mistura agradável vendida por uma traficante simpática num beco de luz vermelha, digno de uma locação em Banguecoque. Dois pinos de vinte e cinco, harmonizados por litrões de Antártica vendidos pela bagatela de dezessete reais no dinheiro.

Era uma situação atípica para elas, dois rapazes jovens e saudáveis que preferiram fazer diversas perguntas a copular. A conclusão por parte das garotas era enfática:

_vocês são bixas

Vestida com uma lingerie bastante cavada, que deixava as laterais dos seios descobertas, repartindo o conjunto buceta-bunda em dois maravilhosos hemisférios, Nathany tinha um semblante saudável e malicioso, que ganhava um charme extra por sua capacidade pulmonar de aspirar gigantescas taturanas de pó.

Délia, de traços mais duros, apostava no conjunto biquíni e topless para angariar clientes. Séria e sarcástica, se mostrou mais aberta ao papo político quando questionada sobre os possíveis impactos de um governo bolsonaro em sua vida.

Nossas entrevistadas se conheceram na Vila há alguns anos, quando chegaram para servir no bordel a fim de sustentar os filhos e o lar, devidamente abandonados por seus homens de bem.

Moradoras de cidades afastadas na Baixada, enfrentavam jornadas sub humanas para chegar ao trabalho, onde se mantinham obrigatoriamente acordadas à base de brizola.

O bate-papo passou pela inexperiência dos entrevistadores que, emplastados emocionalmente pelos efeitos da cocaína , tiveram dificuldades para desembolar perguntas apropriadas, sem contar a falta de preparo prévio. Porém este pode ser um fator positivo, já que é na conversa rasa e despretensiosa que se revelam as grandes diferenças.

Narcóticos habitantes de sarjetas têm a falha tendência de puxar assuntos musicais. O funk carioca aparece como um arco-reflexo, resposta óbvia, nada de novo. Repentinamente um celular é sacado no recinto, a cantora neozelandesa Lorde aparece, 3x mais deslocada que qualquer um ali, coitada.

O clipe da música Royals é uma das coisas mais distantes da realidade de nossas interlocutoras que se possa imaginar. Todo o clima suburbano “clean” lá do outro lado das fossas abissais que separam nossos mundos, com uma proposta meio gangueira (nunca vamos ser realeza), não gera nenhum tipo de conexão ou contato, isso tudo para além da canção em si. Um belo caso de comunicação descontextualizada. Insistindo na falha, resolvemos falar sobre o Dance Hall jamaicano, como uma alternativa caribenha para o funk. Pequena pausa para a apreciação das garotas

-isso é o funk deles???
(aplique um delicioso tom carioquês de deboche aqui)

Mais risadas e tentativas de explicar a suposta conexão. Nada feito. Nos restava apenas seguir para uma famigerada abordagem SOCIAL. Ao contar nossa saga de praieiros mineiros no arpex durante o início da madrugada, fomos surpreendidos pelo total desconhecimento de nossas amigas acerca das maravilhas turísticas que tal cidade oferece aos que podem pagar . As parcas referências que temos do município bateram de frente com o muro classicista.

Depois daí foi só ladeira abaixo, trens lotados, famílias disfuncionais, distâncias enormes, uma verdadeira epopéia carioca; a luta de duas mulheres para se manterem vivas, de forma honesta. Ambas nutrem suas proles da forma que conseguem, vendendo seus corpos para a noite sedenta de prazer e dinheiro.

O terceiro ponto abordado foi o novo governo, afinal estamos em 2019 e o assunto está mais quente do que aqueles corpos suados ali presentes. Natany disse não se importar muito, já que tudo continuaria na mesma para ela, e provavelmente vai. Délia parecia mais ligada nas mudanças anunciadas, e se mostrou preocupada, principalmente com uma guerra entre traficantes e milicianos, transtornos que fatalmente afetariam sua vida e a dos seus.

_cola amanhã em madureira

A sensação final era de confusão; foi divertido? foi, mas sei lá né… O senso comum nesse caso já dá conta da conclusão: foda né!? Mas essa realidade ainda continua muito distante, não transamos, isso foi bom pra elas? pra nós? um bate papo faz diferença? Provavelmente não, só mais um dia na vida dessas pessoas.

A Mimosa é um must do “turismo verdade” no Rio de Janeiro, é uma caricatura gostosa e voluptuosa da cidade, mas não é um local indicado para aquisição de drogas. Lá tudo é organizado e direcionado para o sexo e seus derivados. Desde o preço das bebidas, passando pelo clima de respeito imposto pelo medo, tudo é feito para manter a segurança das práticas e evitar a presença de curiosos e pessoas com intenções divergentes das carnais.

Convidamos as mulheres para um show do Built to Spill em Madureira no dia seguinte, elas não apareceram.