putaquepariu, bicho, Lisciel vai desligar o digital

Lisciel, engenheiro eletrônico e produtor musical, é um mineiro radicado em Petrópolis. Conversamos por áudio via Whatsapp e as falas foram transcritas com cuidado para não corromper o jeitão do entrevistado. A pedido dele, omitimos alguns nomes e o restante dessa intro.

por André Medeiros
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Como tem sido pra você 2020, o começo de 2021? Como a pandemia afetou sua vida e seu trabalho?

Bom, vamo lá. Chatão falar isso, cara. Mas foi bom pra caralho a pandemia. Chato porque todo mundo fala “pô, foi ruim pra caralho”. Não, pra mim foi bom demais. Porque o estúdio ficou vaziasso, e putaquepariu bicho. Eu gravo banda desde, sei lá, noventa e alguma coisa. Em 1999, eu tive que parar de andar de skate porque o estúdio tava entupido de banda, telefone tocava o dia inteiro na casa da minha mãe, ela ficava maluca. E aí na pandemia, cara, foi a única hora da minha vida que eu fiquei tipo três meses sem gravar, sacou?

Quando as bandas que tinham marcado passaram pra frente a gravação, eu vendi uns equipamentos pra uma galera do pagode FORTE aqui do Rio [cita nomes], e um outro cara também [cita nome], que trabalha com [indiscrição] daquele que a gente adora, mas que é uma indústria muito forte, né? Aí eu peguei essa grana e falei “eu vou ficar de boa agora, tranquilo”. Mas como a gente tem estúdio, eu pensei: “tranquilo o cacete”. Fui e meti dinheiro no estúdio todo. Aumentei ele, botei mais duas máquinas de 24, coloquei um Hammond, um Wurlitzer, comprei um gravador de vinil, pra gravar vinil mesmo, sabe? Fazer vinil. Talvez, não sei, talvez seja o único estúdio da américa latina que você entra e grava analógico, agora, sem precisar comprar fita, sem chamar ninguém pra alinhar porque eu mesmo alinho, sacou? Se a banda pisar aqui agora, a gente mete um rec na fita ali e grava em analógico. Tem três máquinas funcionando, alinhadas, e, no total, são cinco máquinas de 24 canais. E de oito canais deve ter umas três ou quatro aqui, uma de 16 canais, enfim. Talvez, depois que tudo funcionar, essa loucura minha traga esse diferencial aí do estúdio. A gente vai desligar agora o sistema digital, pra você ter uma ideia, o patch bay. E aí, respondendo à pergunta, essa bagunça toda que eu arrumei, a pandemia serviu pra isso. Pra botar ordem no estúdio, mas apostar pra caralho em gravação cada vez mais analógica e sair fora do digital assim com força mesmo, protoolzinho 9** ali, e não vai sair desse 9 até eu não conseguir ligar mais o computador [risos]. E tá quase lá! [risada maléfica]

Dinheiro não

Que bom saber que você tá se virando bem nesses tempos. Me conta sobre o Detonautas, acho que tem a ver com o que você falou de projetos maiores, que rendem mais. Como foi isso, e o que você tirou da experiência de trabalhar com uma banda de gravadora, com mais grana em jogo?

Tem nada a ver isso. Pra quem trabalha com gente de gravadora é um trabalho puramente egocêntrico, porque você não faz nada ali, só obedece. Apesar dos caras terem me dado muita liberdade, eu não posso falar, só posso obedecer, única coisa que eu posso fazer é isso. E pra todo mundo que trabalha com mainstream ou pensa em trabalhar, principalmente quem não conhece nada, é simplesmente você sentar na cadeira, fazer o que tem que ser feito, e dinheiro não.

Dinheiro você vê como em qualquer outro trampo. Ainda bem que com o Detonautas não foi, mas tem muito artista grande que você trabalha e não vê dinheiro não. Você não vê nada. Porque o seu nome não entra nas composições, entrou a pandemia agora, o cara simplesmente pega o dinheiro dele e some, e você fica na deriva, que foi o que aconteceu com MUITA gente que acha legal pra caralho trabalhar com mainstream. Entrou na pandemia, quem tem grana sumiu. E todo mundo que tá agregado ali, que não tem direito a porra nenhuma, que trabalha ali simplesmente pelo ego, se fudeu pra caralho. Então meu trampo com o Detonautas eu fiz como qualquer outra banda, sacou, só que mais restrito ainda porque eu não posso sentar a mão no negócio. Se eu colocar som mesmo na parada, se eu colocar do jeito que eu quiser, que eu acho certo – certo mesmo, a palavra é essa —, de acordo com meu gosto, o que eu escuto, que é a mesma coisa que os caras escutam também, eu não posso fazer isso. A rádio vai barrar, a Globo vai barrar, sei lá quem vai barrar. Enfim, não entra no mainstream. Meu trabalho com o Detonautas eu fiz o máximo que consegui, só isso. E o que eu aprendi foi porque eu tive contato com a galera que toca muito, no sentido de um take, dois takes no máximo, a música de cabo a rabo. Então eu parei, comecei a parar de programar música em vez de gravar. Isso foi importante. Mas não tem nada a ver com mainstream, nada a ver com dinheiro, nada a ver com gravadora, nada. Trabalhar com gravadora é o contrário do que todo mundo pensa, é sentar a bundinha na cadeira e só obedecer.

Fala um pouco das suas origens, lugares onde passou, como começou na música, depois na produção e nos projetos de equipos. Não sabia que você era skatista, em JF essa cena é forte.

Eu sou de Belo Horizonte. Comecei na música com banda e amigos, acho que praticamente todo mundo fez isso. E [som de latinha abrindo] eu fui morar no Rio porque… porque sim, sacou. Ah, vou mudar pro Rio, tinha uns amigos que moravam lá, falei “Vocês me ajudam? Beleza”. Como eu trabalhava online, foda-se, qualquer lugar que eu fosse ia ser legal, aí eu fui pro Rio. Mais perto, mais fácil.

Eu comecei com estúdio gravando a galera, gravando gravando gravando. E depois eu descobri o que é ser produtor musical, né. Que a galera quer gravar com você, se sente à vontade gravando com você. E a galera precisou falar isso pra mim porque eu nunca entendi isso. Falava “ah, grava aí, qualquer um grava, cara”. Cê tá num estúdio de porão aí, que era meu estúdio, lá na casa da minha mãe na região da Pampulha em Belo Horizonte. Aí você vai descobrindo: não, a galera quer gravar comigo. Porque eu era produtor musical, eu sou produtor musical, não era dono de estúdio. A galera quer gravar comigo. E… é isso. Beleza, é isso aí.

O Forest Lab é um estúdio, uma empresa de equipamentos e tem um lado educacional no seu trampo também. Qual é o perfil da galera que te procura?

Cada pessoa que procura tem um perfil, né. O estúdio recebe bandas que querem fazer um som, só. Todo mundo independente, e bandas que não brincam. Que pegam o carro e viajam não sei quantos dias pra vir pra cá, pegam voo. Eu recebo banda aqui do Brasil inteiro, galera que tá buscando timbrera pra gravação, do jeito que os caras que eles gostam gravaram — Pearl Jam, Iron, Megadeath, sei lá. Eu gravo na fita já tem algum tempo, e a galera curte pra caralho o som, esse é o perfil do estúdio.

Dos equipamentos, é totalmente o contrário. A maioria é mainstream, brazola e de fora. Porque os equipamentos são feitos com peças caras e à mão, e demora pra ficar pronto. Quem entende isso é quem tá lá em cima na indústria. Então aqui no Brasil eu vendo só pra gente grande, [cita nomes]. É engraçado que mainstream no Brasil é isso, né, [cita nomes], esse povo aí. E nos Estados Unidos e outros países, eu vendo pra quem trabalha com R.E.M., Alicia Keys, Blink 182, sacou, só produtor grande. Principalmente Estados Unidos, é só gente muito grande. Porque os caras têm equipamento vintage e eles reconhecem a forma de fazer os equipamentos.

E nos cursos, cara, aí deve entrar a galera que tá a fim de montar estúdio, que é outro tipo de público também. São três tipos de público, cada um tá num negócio aí.

Não tem que ouvir nada

Qual equipo você tem mais orgulho de ter projetado?

Eu acho que o que eu mais gosto… vou falar isso não porque é meio ruim assim. O equipamento que eu mais gostei de ter feito foi o Maletomp, que é um compressor Vari-Mu*. Ele é muito legal, foi muito legal projetar isso. E obviamente a mesa de som, né. Então a mesa e o compressor foram as coisas que eu mais me empenhei em fazer.

Fala da sua relação com a internet. Seu canal no Youtube é grande, tem muita gente sendo influenciada pelas suas ideias. Você gosta do movimento ou é um mal necessário?

Eu acho legal, acho que movimenta uma galera que tá a fim de fazer som e isso fortalece a cena. Então de certa forma eu consigo não influenciar as pessoas, mas dar um caminho pra quem tá buscando a sonoridade do jeito que eu tô. Eu acabo me conectando com muita gente que gosta de gravar, gosta de girar o som, gosta de tocar, gosta de gravar banda. Acabo fazendo parte dessa galera que tá buscando uma sonoridade, mas uma sonoridade de verdade, sem querer roubar ali com alguma facilidade. Aí é massa pra caralho, a internet reúne essa galera, tanto que pelo Instagram por exemplo eu conheci os produtores lá de fora que gravam as bandas que eu gosto pra caralho, as minhas referências. É muito doido isso.

Você mudou algo na forma de trabalhar com a chegada do streaming como grande plataforma?

Sem querer, eu tô ouvindo muito vinil nos últimos anos, e minhas master ficaram mais educadas. Então, quando entrou esse negócio de streaming, elas foram pras plataformas — e pra vinil também, né — e aí eu me dei bem com esse negócio, eu acho.

Então a guerra do volume tá passando mesmo, na sua perspectiva?

Não passa não, porque os retardados tão sempre comparando o disco deles com os outros e pedindo mais volume na master. Eu só ignoro isso. Se quiser volume vai trabalhar com outra pessoa, eu trabalho com qualidade de som.

Uma master mais dinâmica se dá bem no Spotify?

Na minha opinião sim, mas tem cliente pra tudo, cara. Por exemplo, se você trabalha com [piiiiiiii], essas podrera aí, os caras querem tudo alto e não interessa se tá rachando o som, ninguém tá nem aí. Se for trabalhar com pessoas finas, que gostam de qualidade de som, você consegue fazer um trabalho bem feito. Mas eu parei de querer aumentar minha master no talo depois que eu passei a ouvir vinil, eu eduquei meus próprios ouvidos, não tem nada a ver com indústria, nada a ver com nada não. Eu me livrei desse negócio aí. Quando o cara fala que a música do fulano tá mais alta que a dele, eu mando ele masterizar com quem o fulano masterizou. E ponto final, nem entro nessa brincadeira não.

Quer deixar um recado final? Algo mais a falar?

Pra finalizar aí, é fazer seu trabalho, não preocupar se tá legal, se tá paia, não preocupar com a opinião dos outros, isso não vale nada. Muita gente acha que sim, “ah, tem que ouvir”. Não tem que ouvir nada. Tem que fazer o seu trabalho do jeito que você quer. Muito difícil fazer isso, muito difícil. Porque você tá sempre querendo uma aprovação dos outros, principalmente de alguém que você admira. Isso faz muito mal, você fica muito preso. E, se você tá começando, seu trabalho tem que amadurecer, cara. Né? Ele nunca vai ser maduro de cara. Entender que esse processo demora alguns anos, todo processo. Só isso.

* Vari-Mu é um dos Santos Graais do áudio. Um compressor valvulado usado por todo mundo que pode, dos Beatles (vale pesquisar o preço de um Fairchild 670 pra sentir o drama) à banda Calypso.

**Pro Tools é o software mais tradicional de produção musical. A versão 9 está 10 anos defasada.

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