Manifesto da Santa Merda (Audiolivro)

Friedensreich Hundertwasser

Pintor, arquiteto e ativista austríaco, Hundertwasser defendeu técnicas da permacultura e desenvolveu seu próprio banheiro seco, que não utiliza água. A merda é coberta por materiais secos (palha, cinzas, papel, folhas) e compostados com a ajuda do calor solar. É a verdadeira curtição da bosta.

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Leia o manifesto

Eu quero falar sobre a causa da decadência de nossa civilização.

O reino vegetal levou milhões de anos cobrindo a lama e as toxinas com uma camada de húmus, uma camada de vegetação e uma camada de oxigênio, para que o ser humano possa viver na terra.

E este ser humano mal agradecido então traz a lama e as substâncias tóxicas – que tinham sido recobertas por um tedioso esforço cósmico – de novo à superfície.

Dessa maneira, por meio dos desacertos da irresponsável espécie humana, o fim do mundo converte-se no começo de todos os tempos. Estamos suicidando-nos. Nossas cidades são carcinomas. Do alto se vê claramente.

Não comemos o que cresce perto de nós – importamos comida de lugares longínquos, da Europa, da Rússia, da China, da Austrália.

Não conservamos a nossa merda. Os nossos desperdícios são descarregados e enviados para bem longe. Envenenamos os rios, lagos e oceanos, ou transportamos a nossa merda para fábricas de purificação complicadas e dispendiosas, ou raramente em centrais onde ela é transformada em composto. A merda nunca volta aos nossos campos, nem volta aos lugares de onde vem a nossa comida.

O ciclo pelo qual a comida se converte em merda continua funcionando.
O ciclo pelo qual a merda se converte em comida foi quebrado.

Criamos a ilusão do lixo.
Não existe lixo.
Não existe jogar fora.

Sempre que acionamos a descarga, com a convicção de que estamos executando um ato de higiene, estamos rompendo as leis cósmicas.

Quando vamos ao banheiro, fechamos a porta por dentro, apertamos a descarga e mandamos a merda para bem longe, tentando pôr um ponto final a alguma coisa. De que temos vergonha? Negamos o que acontece com a nossa merda, da mesma maneira como negamos a morte.

Para nós, o buraco da privada parece-se com a porta da morte, procuramos fugir dela o mais rápido possível, esquecer o mais rápido possível a podridão e a decadência, quando é exatamente o contrário. É com a merda que a vida começa.

A Merda é o tijolo de nossa ressurreição. Desde que o ser humano pensa ele tenta ser imortal. Tenta ter uma alma. A merda é nossa alma. Pela merda nós podemos sobreviver. Pela merda nós somos imortais. Se nós não apreciarmos nossa merda se transformar em húmus nós perdemos nosso direito de estar na Terra. Em nome de falsas leis de higiene, nós perdemos nossa substância cósmica, perdemos nosso renascer.

Homo – humus – humanitas, três palavras com a mesma origem. Húmus é o verdadeiro ouro preto. O cheiro de húmus é mais sagrado e próximo à deus que o dos incensos. Quem caminha na floresta depois da chuva conhece o cheiro. É o cheiro de Deus, o cheiro da Ressurreição, o cheiro da Imortalidade.