José Sette, cineasta infernal

Cristiana Magalhães e Tamiris Soldati
Ilustração: Lucas Borges

“Film commission é o caralho, já começou mal!”

Assim começa o diálogo no curta-metragem Contracampo (2011). O diretor se coloca como ator para interpretar a sua própria experiência. Está sentado ao telefone, fumando o cigarro que não apaga nunca, negociando o próximo filme. “Isso aqui é o Brasil!”. Projeta fervorosamente sua rejeição pelo cinema hollywoodiano. Logo adiante, tira o chapéu para figuras que se destacam na história do cinema estadunidense pela independência e inventividade, como John Cassavetes e Orson Welles. Esse é mais ou menos o tom do personagem que apresentamos aqui. 

Estamos falando de José Sette, uma das raízes do cinema independente juiz-forano. Segundo ele, o próprio pai do cinema na cidade, sob o argumento de que não existiam filmes em Juiz de Fora antes da sua chegada. Nasceu na pequena Ponte Nova em 1948 e a partir de lá começa a jornada para outros vários endereços. Passou por Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Europa e a nossa querida Jufas, com residência fixa por aqui por quase dez anos. Mudou-se na sequência para Cabo Frio, onde vive até hoje. O cinema, diga-se de passagem, é apenas uma das expressões artísticas de José Sette. Ele também é pintor e poeta, misturando todas essas formas numa arte inegavelmente autêntica.

É preciso tomar fôlego para situar José Sette em algum conceito previamente elaborado. Isso porque ele escorrega em toda tentativa de enquadrá-lo em qualquer conjunto de significados. Em suas palavras, só existe o bom cinema e o mau cinema. Bate o pé dizendo que nunca realizou um documentário. Não concorda com o termo underground. Mesmo assim é impossível deixar de lembrar e falar, ainda que minimamente, do que foi o Cinema Marginal brasileiro, época bastante frutífera do nosso audiovisual underground. 

Samir Hauaji é Fernando Pessoa e Henrique Simões interpreta Murilo Mendes

Mais um vídeo experimental sobre as mazelas humanas

Curiosamente, o cineasta rejeita essa caracterização sobre sua filmografia. Até se considera um pouco marginal. Mas o seu cinema, não. No entanto, lá está, José Sette, marcando sua presença no cinema underground brasileiro, no final da década de 1960. Desde o início, participa das produções de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Neville D’Almeida, alguns dos grandes representantes da realização independente no país. Era o cinema do grito, contra a repressão da ditadura, rumo à emancipação dentro do quadro cultural e industrial brasileiro. Resumidamente, o que se convencionou chamar de Cinema Marginal é um conjunto de filmes que possuíam características em comum de uma época muito específica. Não era exatamente um movimento organizado, mas tinha lá o seu brio.

É difícil, para nós, apaixonadas pelo cinema nacional de baixo orçamento, encontrar sentido nessa birra com o marginal. Mas temos consideração aos sentimentos de Sette e queremos mostrar o seu ponto de vista. Para ele, soa depreciativo, por parecer jogar todo um esforço e uma estética para o escanteio. Prefere chamar de cinema da inventividade ou cinema de autoria ou somente o cinema de José Sette. De qualquer maneira, ele compartilha notáveis características do cinema dessa época e continua carregando parte dessa bagagem nas produções mais recentes.

Totalmente livre de amarras morais, a construção fílmica desse período é altamente carregada com o aspecto de “curtição” e de “avacalho”. Por outro lado, também está ali associado uma certa agressividade, como forma de imprimir o terror e o medo da ditadura na experiência cinematográfica, assim como descreve Fernão Ramos. A metalinguagem, ou seja, o cinema dentro do cinema, é outro recurso recorrente e a narrativa é apresentada quase sempre em fragmentos, sem compromisso com conexão causal afinada entre eles. Paulo Villaça, Guaracy Rodrigues, Maria Gladys, Paulo César Pereio e outros encenavam tanto para José Sette quanto para outras realizações marginais. 

Sette não se importa em aparecer nos gritos de ação! ou corta! que faz questão de manter, orgulhosamente, no corte final do filme. As ferramentas e processos do cinema estão ali escancaradas. E não censura os efeitos de distorção das imagens ou de transições mais banais. Se coloca na frente da câmera e também incorpora outras expressões artísticas como o teatro, poesia, dança e artes plásticas. Até a arqueologia virou poesia no curta-metragem Peter W. Lund, O Homem de Lagoa Santa (1976). 

Sua carreira como cineasta começa em plena ditadura militar brasileira. Diversos artistas, como os citados acima, recorreram ao exílio voluntário na Europa, onde também foi parar José Sette. Ele conta que seu primeiro filme foi feito no exílio, Misterius (ano desconhecido), mas acabou perdido. De volta ao Brasil, faz seu primeiro longa finalizado, Bandalheira Infernal (1975-1976), sem roteiro, sem glamour, um típico filme de seu tempo.

Espiã do governo em Bandalheira Infernal

Meu cinema é poesia e invenção

Suas influências anunciadas são o cinema brasileiro, autoral e inventivo, e o expressionismo alemão, recorrentemente citadas desde entrevistas até as produções caseiras. O expressionismo é certamente uma de suas fontes para os frequentes planos marcados por angulações extremas. Os inúmeros plongées e contra-plongées contribuem profundamente para a estilização da imagem. 

Aliás, a obra inaugural do expressionismo no cinema, O Gabinete do Doutor Caligari (1920), está citado em Somnium (2021), última produção de Sette, entre outras referências que compõem todo esse mosaico cinematográfico. Evoca também Mário Peixoto, por Limite (1931). Até Godard foi encaixado por ali. A propósito, esse é o curta em que Sette confronta os filmes que produziu ao longo da carreira, travando uma conversa profundamente filosófica consigo mesmo enquanto vive um pesadelo.

José Sette - Baixo Centro

A mais recente viagem cinematográfica de José Sette, SOMNIUM (2021).

Das produções que movimentaram a cidade de Juiz de Fora, quase todas serviram como um resgate biográfico e poético de conhecidos nomes locais que, apesar de projetados pelo mundo, são fatalmente pouco celebrados por aqui. O registro do poeta Murilo Mendes está no média-metragem A Janela do Caos (2000) e o sambista Geraldo Pereira no longa O Rei do Samba (1999). Já o artista plástico Arlindo Daibert, apaixonado por cinema, está representado na viagem de Ver Tigem (2002), que retrata, de forma poética, a sua morte, depois de assistir o filme de Hitchcock, Um Corpo que Cai (1958). 

Em Labirinto de Pedra (2003) está homenageado o médico e escritor juiz-forano Pedro Nava. O poeta expressionista e simbolista Augusto dos Anjos está registrado na realização de Eu e os Anjos (2001), com entrevistas e cenas poeticamente carregadas. Ainda em Juiz de Fora realiza o longa Amaxon (2009), um manifesto poético sobre a arte da criação em um mundo desequilibrado, perdido, sufocado e desesperado, nas palavras do cineasta.

A condução narrativa se adapta individualmente para cada um desses personagens locais. Geraldo Pereira e seu espírito desencarnado vivem um musical. Murilo Mendes perambula e declama versos pela cidade. Pedro Nava encontra-se com as gerações passadas do seu eu e evidencia o poeta. Augusto dos Anjos volta do cemitério e se manifesta aterrorizante em meio às entrevistas. É quase seguro dizer que talvez seja nesse momento em que Sette abandona um pouco o discurso político passado para adequar sua expressão poética à trajetória de cada um dos citados, com profundo carinho. 

Dos sessenta e cinco registros audiovisuais que estão disponíveis on-line, pouquíssimos contaram com financiamento do Estado ou da iniciativa privada, lembrando que o baixo orçamento é causa e consequência de toda a sua filmografia. Dois foram reconhecidamente premiados, como são os casos de Um Filme 100% Brazileiro (1985) e Goeldi, Um Sorriso Por Favor (1981). 

“Mexo com arte, tô pobre. Mexo com bicho, tô rico. Dou aula, tô pobre. Vendo petróleo, tô rico. Sou povo, tô pobre. Sou elite, tô rico. Rico e pobre, assim caminha a humanidade”. É o que declara José em Contracampo II (2011), nos tirando o resto de esperança de que um dia poderemos viver da arte independente no Brasil.

O espírito de Geraldo Pereira ouvindo o que o pessoal do bar tá falando sobre ele

Se um iconoclasta é um destruidor de ídolos, eu sou um iteoclasta, destruidor de ideias

Mas qual seria, afinal, o conceito mais próximo de cinema para José Sette? Muitas das peças encontradas no seu portfólio on-line são capazes de atrapalhar a assertividade de uma definição. Pegue o exemplo da primeira produção de sua neta, Nina Sette, evidentemente carregada da linguagem da internet e que ganha do avô o direito de nomeação como diretora, bem como créditos finais de edição e trilha sonora. Portanto, é um filme.

Na falta de conceituação sobre o que é exatamente esse cinema, ficamos com uma das frases do monólogo em Memórias Sentimentais (2014): “Cinema, correio da luz, no princípio o caminho das artérias, no final é o martírio da cruz”. Talvez seja essa imprecisão conceitual que o coloque nos vários períodos cinematográficos que se passam desde que começou sua carreira. No culto à excentricidade, declara, no mesmo filme: “Às vezes me sinto dentro do tempo e fora do mundo”. Inicia-se nos 35mm e hoje vive o feito por celular, oportunamente tomando posse da baixa qualidade da imagem como verdadeiro estilo.

Gueminho Bernardes é o dono do bar que serve Natálio Luz, que interpreta Pedro Nava

Temos que vestir a carapuça da contextualização histórica para comentar algumas questões que hoje nos parecem ser bastante problemáticas para ver onde ela serve ou não. Isso porque a inventividade demanda pouca vergonha burguesa na cara, o que pode causar incômodo desde a militância até o conservadorismo. O machismo, racismo e outras questões estão ali manifestados como parte de uma época, o que certamente estaria sujeito ao julgamento do nosso debate atual sobre uma representatividade que seja emancipatória. Os direitos dos animais foram pro final da fila, como sempre. Não poderia deixar de comentar. 

Fica o nosso elogio ao José Sette por disponibilizar de graça toda sua obra na internet, importante para o acesso da cultura produzida nacionalmente, como explica Adirley Queirós. No Youtube deposita os longas, médias e curtas-metragens dos mais aos menos conhecidos da carreira de cineasta. São vídeos caseiros, peças teatrais, diários de viagem, kynopoemas e até uma ou outra publicidade. O caoticamente diagramado blog Kynoma foi criado para os textos e nem o Instagram escapou do Zé, onde estão expostas as pinturas que precisa vender para poder comer o seu caviar. Quem escapou mesmo foi o Sette do algoritmo, que até hoje não identificou os setecentos falos e mamilos que aparecem plenamente na filmografia. E que continue assim.

Esse texto se baseou diretamente nas obras disponíveis do José Sette na internet, na entrevista realizada pelo Museu de Artes Murilo Mendes, conduzida por Karina Orquídea, e também nos links abaixo. 

http://www.contracampo.com.br/46/josesette.htm
http://kynoma.blogspot.com
http://cinemateca.gov.br