por Raphael Pires
“O fogo purifica. Purifique a polícia”. Lembro de ter visto essas frases pixadas no centro de BH uns anos atrás, provavelmente em 2014 em face dos protestos contra a Copa do Mundo. O uso do fogo em mobilizações sociais é antigo, e bastante efetivo. Queima sem discrição e causa emoções que despertam qualquer espírito moribundo em qualquer época. Foda que o fogo anda desaparecido aqui no Brasil.
O problema é que a mensagem no muro, apesar de muito bacana e bem construtiva, pode ter sido escrita em um momento em que vai ficar só ali mesmo, solitária na virtualidade da palavra (se já não foi apagada). Não vai conseguir efetivamente purificar a polícia com fogo. Vai ser só simbólico. Talvez estejamos passando por um hiato bunda mole de moralismo sobre a ação direta e a propaganda pela ação.
Mas talvez o fogo possa voltar a ser visto enfeitando camburões e armaduras no Brasil em um futuro próximo. Quem sabe. Fato é que o fogo é figurinha marcada em mobilizações sociais (não ativismo, porque isso já desandou igual um monte de ismos por aí).
E por isso, vou comentar aqui sobre 7 eventos recentes em que o fogo foi usado por pessoas para tentarem conseguir (porque nem sempre dá certo, mas tudo bem, pelo menos você tentou) o que queriam sem precisar de diálogo, que pode ser muito chato e infrutífero às vezes. Pelo menos é o que tem mostrado a lógica das redes sociais, que já pôs seus ovos na política e na comunicação offline.
Prédios queimando em Minneapolis
AP Photo/John Minchillo
Fogo nos racistas. Frase boa pra sair das redes sociais e ir parar na capa do jornal. Mas enquanto isso não acontece, ver um prédio inteiro em chamas como resposta a um sistema estruturalmente racista já dá uma aquecida nos ânimos.
A polícia é o poder do Estado em ação, o monopólio da violência legalizada que coloca em prática o lema da lei e ordem (trocando em miúdos: paz pra mim, guerra pra todos vocês). É quando o poder simbólico adquire fisicalidade e deixa de ser uma ideia pra se tornar ação de fato. E não há ação sem motivação, sem sentimento ou sem padrão de comportamento.
Se Floyd foi asfixiado pelos policiais no meio da rua, sem nenhum pudor frente às câmeras de celular, é porque existia ali uma força maior do que a pressão do joelho do policial no pescoço dele. A força da ideia de supremacia: o sentimento que alavanca a ação. Por isso, o assassinato de Floyd pelo Estado não é só um fato, um acontecimento, mas sim a materialização de um poder.
O racismo está aí, exercendo seu poder por estruturas e sentimentos, mas é quando a coisa toma corpo que nos salta aos olhos sua tragédia. Movimentos anti-racistas também estão aí, exercendo poder simbólico em várias frentes, mas também é quando esse poder toma corpo que podemos ver sua força, sua revolta.
Que se queimem tantos prédios em Minneapolis que a fumaça possa encobrir qualquer ideia de supremacia.
Os protestos anti-austeridade na Grécia
Facebook / Reprodução
De longe o melhor personagem dessa história toda é o Loukanikos, o cachorro anarquista que se mantinha na linha de frente dos protestos que começaram em 2010. O povo ficou puto devido a políticas de austeridade anunciadas pelo governo, que iriam aumentar impostos e cortar investimentos em gastos públicos.
A Grécia foi o país europeu que ficou mais fudido com a crise econômica de 2007-2008, causada pelo jogo sujo do capitalismo financeiro. A Grécia se endividou e os credores exigiram que os gregos pagassem pelas consequências das brincadeiras de especuladores bilionários.
O preço? Corte de direitos trabalhistas, mais impostos e menos investimentos públicos. A resposta? Molotov.
Inventado pelos antifascistas na Guerra Civil Espanhola e batizado pelos finlandeses na Segunda Guerra Mundial, o coquetel molotov foi um dos principais artifícios de combate usados pelos manifestantes na Grécia. Certa vez um policial quis pagar de machão pra cima dos manifestantes e acabou fantasiado de Motoqueiro Fantasma. Isso que dá não ficar do lado do povo e querer defender um sistema corrupto e especulativo, que trata com desdém a vida e a experiência de pessoas comuns.
Os gregos mandaram muito bem na linha de frente de combate, com muitos piquetes e ocupações que perduraram bastante tempo. Uma delas inclusive se tornou um bairro anarquista e autônomo dentro de Atenas. Exarchia é uma região autônoma e autogerida, fruto da organização das ruas. Hoje passa por uma situação tensa, devido à ascensão da direita conservadora no país. Talvez os molotovs voltem a voar por lá.
O monge budista
Malcolm Browne
Também teve aquele caso em 1963 do monge budista que colocou fogo no próprio corpo numa rua em Saigon, no Vietnã do Sul. O nome do monge era Thích Quảng Ðức, tinha 66 anos, e foram os seguidores de Jesus que causaram sua morte.
Infelizmente não foi nem a primeira e nem a última vez que o cristianismo fez merda mundo afora, tendo presença garantida na primeira fileira dos espetáculos de guerra, genocídio, dominações e pensamentos retrógrados. No Brasil a colonização foi católica e a do novo milênio é neopentecostal.
No caso do monge vietnamita, a atitude extrema (pelo menos pro ocidente) foi uma resposta direta a uma série de políticas discriminatórias contra budistas que o primeiro presidente do Vietnã do Sul (depois da divisão e independência), Ngo Dinh Diem, vinha instaurando desde 1955. De acordo com o presidente, o país era devotamente católico e em 1963 proibiu a exibição de bandeiras budistas.
Depois dessa proibição o clima esquentou tanto que Thích decidiu que iria se sacrificar com a autoimolação tanto como um protesto às políticas do presidente quanto como uma devoção radical ao budismo. O ato ocorreu durante uma manifestação de algumas centenas de budistas em Saigon e deu o que falar na época. A foto tirada por Malcolm Browne virou até capa de disco.
A autoimolação também foi o meio que o tunisiano Mohamed Bouazizi encontrou em 2010 para protestar contra a humilhação que seu povo vinha sofrendo. Depois de ter seu carrinho de frutas confiscado e ser humilhado pelos políticos que lhe negaram ajuda, botou fogo em si mesmo em frente ao prédio do governo da sua região. Foi a fagulha que deu início à Primavera Árabe.
Mas não vai querer sair por aí metendo fogo em si mesmo achando que vai abalar o mundo. Mais pessoas fizeram o mesmo ritual de Thích e Bouazizi e ninguém se lembra. Além do mais, essa prática de autoimolação é uma tática de protesto ligada ao oriente. Fazer isso no Brasil seria apropriação cultural. Então além de morto, você seria cancelado do rolê.
Professores queimando pneus em rodovias no México
Jorge Luis Plata/Reuters
Quem mandou querer ensinar os outros? Vai tomar pipoco da polícia! Devia ter aberto sua própria startup de e-learning ao invés de dar aula em escola municipal. Com essa mudança de mindset, o governo mexicano começou a implementar uma série de reformas neoliberais no sistema educacional mexicano em 2013. Três anos depois, os professores da região de Oaxaca decidiram que era hora de reviver Emiliano Zapata e partir pra cima.
Também pudera, a região de Oaxaca é um exemplo mundial de auto-organização popular, democracia direta e luta armada contra o imperialismo. Você não precisa de partido político para mudar as coisas e os povos indígenas do sul do México sabem disso muito bem.
Em 2016, para fazer frente às frequentes demissões de professores e às reformas que poderiam dificultar ainda mais o trabalho de lecionar, os professores resolveram fechar uma das principais rodovias de acesso à Oaxaca para pressionar os governantes a pararem as reformas e para mostrar a força de luta daquela região. A tática foi queimar pneus na largura de toda a estrada, impossibilitando o tráfego (além de molotovs).
Foram dias de batalha sangrenta contra os policiais, que atacaram os manifestantes com o ódio costumeiro desta claque. Seis pessoas morreram, algumas delas atingidas por balas de verdade utilizadas pela polícia.
Junho de 2013
Daniel Queiroz
“Ai, mas foi aqui que começou a revoada fascista no Brasil”. Não. A verdade é que eles sempre estiveram por aí, mas souberam aproveitar o momento para terem palanque. Tem quem culpe os anarquistas; tem quem culpe os cirandeiros; tem quem culpe a esquerda institucional; e tem quem culpe o governo, que não apoiou as manifestações, como responsáveis pelo desastre que se seguiu.
O assunto é espinhoso e tem muito debate inacabado sobre isso, mas uma coisa é certa: o clima de revolução estava no ar. Era uma revolta popular que tomou uma enorme proporção amorfa, sem direcionamento e precisando de uma narrativa. Não soubemos aproveitar o momento, nos preocupando mais com a estabilidade do governo do que com a voz do povo. Não deu outra: o outro lado tomou a narrativa para si e 7 anos depois ainda estamos batendo cabeça pra entender como virar o jogo.
Com fogo, eu digo. Agora que não tem nenhum governista enchendo o saco falando que “sair na rua para protestar é fazer o jogo da direita”, não tem nenhum impeditivo da gente se unir.
Os policiais carbonizados em Chauri Chaura
Reprodução/Internet
Então você acha que não teve ninguém morrendo queimado na Índia durante a revolução pacífica do Gandhi? Achou errado! Invadir um país para roubar recursos só pode dar merda. Foi e é assim em todo mundo. O mais triste é que os causadores dessas tragédias nunca são punidos e acaba sobrando ódio pra gastar entre o próprio povo.
Mas convenhamos, ficar do lado do país rico que oprime seu povo e bater de frente com uma revolta popular merece um sopapo. Foi o que aconteceu com o que ficou conhecido como o “Incidente de Chauri Chaura”, uma cidade no interior da Índia.
Em 2 de fevereiro de 1922, manifestantes estavam nas ruas protestando contra a alta dos preços de alimentos e bebidas e foram reprimidos com violência pela polícia local. Alguns foram presos na estação de polícia local e, em resposta, uma nova manifestação foi chamada para o dia 4 de fevereiro.
Aí o pau quebrou. Como um bom protesto, algumas lojas foram saqueadas, mas a polícia conseguiu descer o cacete e prender o líder do movimento (um ex-militar chamado Bhagwan). Já putos de raiva com a situação do país e ainda com uma polícia que faz questão de espancar seu próprio povo, parte dos manifestantes foi para a frente do quartel da polícia.
Com uma multidão enfurecida, o que faz a polícia então? Envia policiais armados para darem tiros para o alto, com o intuito de amedrontar as pessoas. Nem preciso falar que esse pensamento idiota deu errado. Faltou pedra no chão, de tantas que voaram para cima dos policiais.
Putinho, o chefe de polícia ordena para atirarem contra os manifestantes. Três morreram ali. E os manifestantes? Recuaram? Pelo contrário, foram para cima com a imagem na cabeça de companheiros mortos e, bom, colhe-se o que se planta.
Botaram fogo na estação de polícia com todos os policiais lá dentro. Cerca de 23 oficiais foram mortos, carbonizados ou espancados pela multidão. Não teve nenhum britânico chorando por nenhum deles.
Os franceses e os carros
Foto da internet
Queimar carros na França já é uma tradição. Tem um simbolismo bacana de uma mistura ambientalista e anticapitalista que faz com que a imagem de um carro queimando seja uma das mais belas numa manifestação. Além disso, é um ótimo objeto para se usar em uma barricada.
Já que a indústria automobilística invadiu o mundo todo e é uma das mais poluentes do mundo, nada melhor que vermos carros queimando em todo o globo. Inclusive, sempre achei Juiz de Fora uma cidade com um excesso absurdo de carros. Deve ter muita BMW no Alto dos Passos que ficariam lindas com uma pintura carbonizada.