Retrospectiva: Clipes do Inhamis

20 DE OUTUBRO DE 2022
POR EDUARDO BENTO

O INHAMIS começou no início dos anos 00 como um fanzine impresso destinado a estudantes secundaristas que só escutavam hardcore. Em 2005, iniciou-se a fase universitária em versão e-zine, cuja trajetória foi desviada à medida que a democratização da internet banda larga impulsionava as redes sociais e as plataformas de streaming. Num período de transição desencadeado pela chegada da Web 2.0, o canal no Youtube não demorou a ofuscar os posts do site. Clipes de bandas, vinhetas sem sentido, documentários e curtas de ficção foram gravados em câmeras mini-dv, compartilhados no Orkut e assistidos por jovens que frequentavam lan houses ou assinavam o plano Oi Velox.

Em 2008, após a derradeira implosão do e-zine, o staff se dispersou em diferentes empreitadas, como o blog Last Splash, a gravadora Pug Records e o Inhamis Studio – CNPJ criado para que o casal Francisco Franco e Fernanda Roque emitisse notas ficais de freelas nas áreas de design e audiovisual. Foi preciso mudar tudo para que nada mudasse. O mundo deu apenas uma volta e esses projetos já estavam interligados. Ao longo de 2009, a firma fez várias parcerias com ex-colaboradores do e-zine, incluindo o clipe de Nunca Nunca, um divisor de águas na carreira do gigante Lê Almeida e na cena underground de Juiz de Fora, MG. Eis o ponto de partida desse texto dividido em 10 capítulos e arbitrariamente redigido em terceira pessoa.

Para manter a fluidez, os créditos foram omitidos, mas podem ser facilmente encontrados. Sócios, funcionários e agregados do Inhamis, freelancers e outras empresas do ramo têm assumido diferentes funções em cada vídeo, passando por cargos que vão de figurante a roteirista, de motorista a diretor. Francisco e a maioria dos redatores do falecido e-zine formaram-se em Jornalismo na UFJF aos trancos e barrancos. As fichas técnicas dos clipes selecionados para essa retrospectiva estão repletas de nomes que passaram pelo Instituto de Artes e Design.

Print screen do início do século passado resgatado pelos arqueólogos do database.fm. Essa mensagem de despedida movimentou fóruns de haters que comemoraram “o fim do império pseudo-cult juizforano”

01. CORAÇÃO TRANSFUSIONADO

O blog Last Splash nasceu com a nobre missão de ser uma empresa de fachada da Pug Recs. Em meio a uma avalanche de postagens sobre bandas de outros países, havia a Transfusão Noise Records, gravadora que emergiu na Baixada Fluminense em 2004. Não eram playboys da Zona Sul, nem de Sampa, tinham uma vibe anos 90 e um genuíno espírito DIY, amavam Guided by Voices e cantavam em português. Deu match. Em julho de 2019, o blog viajou até São João de Meriti para entrevistar Lê Almeida e sua gangue, que retribuíram a visita num sábado de agosto para gravar as cenas de Nunca Nunca em três cartões postais da Princesinha de Minas – Bosque da UFJF, Curva do Lacet e Parque da Lajinha. Ainda no final daquele ano, Leandro faria uma segunda visita a Jufas, quando tocou no Café Muzik e produziu o primeiro EP da Top Surprise, que seria lançado em maio de 2010.

Para superar a estética de vídeo caseiro, o Inhamis estreou a Canon HV40, filmadora HDV que, apesar de utilizar a famigerada fita mini-dv, proporcionava um resultado mais cinematográfico, com taxa de 24 frames por segundo e resolução de 1920 x 1080 pixels. Outra novidade era a possibilidade de adaptar lentes de câmeras fotográficas.

O clipe passou na MTV, TV Brasil e afins, atraiu a atenção de jornalistas, possibilitou os primeiros shows em São Paulo e impulsionou o clássico RÉVI, EP prensado em compacto pela Vinyl Land, selo do também juiz-forano Luiz Valente. Essa reverberação inspirou novos artistas e deu fôlego para outras cooperações audiovisuais entre Inhamis, Pug e Transfusão.

Áudio do whatsapp enviado por BENKE FERRAZ (BOOGARINS): Passou a entrevista com o clipe no programa Alto Falante. Eu assistia muito por causa das velharias do Enciclopédia do Rock. Acompanhava também a cobertura dos festivais independentes (…) Naquela época, Nunca Nunca e aquela sonoridade anos 90 era uma coisa muito indie: o rock do Nirvana sendo representado em sua essência. E toda a feição mesmo, o perfil do Lê, falando as coisas numa postura não muito comercial/padrão/branquinho/loirinho fez a gente ali do interior se identificar. Até então a gente nunca tinha escutado um rock alternativo anos 90 com aquela cara. O fato de ele produzir em casa, ter o selo dele, fazer as paradas mesmo sendo na periferia, não sendo herdeiro de nada… Aquilo inspirou bastante. E quando eu cheguei na escola, fui falar com o Dinho, e nós dois lembramos da entrevista do cara que grava em casa…

Até mesmo quando Boogarins fez a turnê abrindo pro Guided By Voices, eu não concebia que o Lê achava o Guided By Voices a melhor banda do mundo, porque pra mim o próprio som do Lê era melhor. E só depois com o tempo que eu fui conseguindo mergulhar melhor nas referências…

Áudio do whatsapp enviado por FELIPE ALVIM: Eu já tinha lançado o clipe de Jardim de Amor, e estava morando em BH, compondo o resto de Zero. Tava passando na Rede Minas o Clipe do Lê, daí reconheci Juiz de Fora e o Inhamis, que eu já era fã. E me incentivou pra caramba, me fez procurar informações sobre aquele rolê.

02. PUTA SURPRESA!

A Top Surprise assustou a pacata Juiz de Fora e revigorou a cena de bandas brasileiras que faziam gravações caseiras de canções pop curtas e barulhentas. O EP de estreia Everything Must Go apareceu em vários blogs gringos, rendeu um convite para tocar no festival texano SXSW e popularizou a gravadora do cachorrinho entre jovens da classe média que se autointitulavam integrantes da Gangue do São Mateus.

Lançado em 2011, Home utilizou adaptador Letus 35mm e lente Pentax 50mm acoplados à câmera HV40. Sujo, randômico e poético, o clipe foi nitidamente inspirado pelo clássico Gummo, longa-metragem do diretor Harmony Korine renomeado para Os Bons Malandros em Portugal. Assim como as canções da banda liderada por André Medeiros, o vídeo é uma tentativa de extrair a beleza do caos.

Em 2013, o terremoto folk-punk Ready for the Haze testou os limites do noise pop, com vozes desafinadas imersas em densa atmosfera lo-fi. O clipe contou com dezenas de jovens tocando guitarra, fumando e bebendo numa casa enfumaçada prestes a ser demolida. Para garantir mais espontaneidade, o diretor optou por utilizar quatro câmeras simultâneas – escolha apropriada para conseguir registrar um tumulto que quase saiu do controle. Essa abundância de equipamentos foi possível devido à camaradagem dos amigos e, sobretudo, a uma revolução no audiovisual: a popularização das câmeras fotográficas digitais, mais conhecidas como DLSR, que em 2008 incorporaram o botão rec e na década seguinte passaram a ser amplamente utilizadas por videomakers.

03. SÓ EQUIPO FODA MEU, INFRA MÓ DAORA

Judeus fortemente armados. Parece a Cisjordânia, mas é apenas a B&H Photo Video, loja de Nova Iorque onde todos os funcionários são faixa preta em Krav Magá. Dias depois, a câmera BlackMagic estava na fronteira com o México. Clima seco. Tenso. Coiotes por todos os lados. Azar de quem não assistiu ao vídeo do Pedro Bial e se esqueceu de passar protetor solar. Com o auxílio de uma mula, a última etapa do contrabando foi bem-sucedida e permitiu ao Inhamis adentrar no universo 4K. Em 2014, essa CÂMERA DE CINEMA ainda impressionava pela altíssima resolução e, portanto, merecia ser estreada em São Paulo, cidade onde o culto aos softwares e hardwares atinge níveis alarmantes. Voodoo Friday, da Go Spllash, é protagonizado por dois primos-gêmeos-não-idênticos que se enfrentam na selva de pedra.

O clipe estreitou as relações entre Inhamis e José Hansen, ator da boca do lixo que interpretou o papel de alter ego do multi-instrumentista Guiga Hansen. Quatro anos depois, Joe Hannen conquistou o tão sonhado anonimato apresentando os vídeos da websérie Baixo Centro, até que em 2020 o canal do Youtube inverteu o caminho percorrido pelo Inhamis e se transformou no site que você está lendo agora. Esse downgrade elevou o VJ Meleca ao posto de colunista.

04. É JUFAS, PORRA!

Numa época em que as casas noturnas estavam em franca decadência, vendendo longnecks a preços inflacionados e convidando a escória da cidade para atacar de DJ, a juventude sônica do minas gerais organizou vários eventos gratuitos em bares e praças do São Mateus e do Baixo Centro. Graças ao apoio de grandes marcas como Inhamis e Ambev, foram realizadas feiras de zines, mostras de vídeos, discotecagens e shows das melhores bandas do mundo, provando que eventos culturais podem e devem proporcionar aquela curtição desenfreada. Bairrista ao extremo e sem espaço para artistas locais de qualidade duvidosa, essa temporada foi de 2013 a 2017, tempo suficiente para resgatar e ressignificar a expressão JUFAS – muito antes de CNPJs hipsters começarem a ruminá-la num storytelling de má fé.

O clipe de Meus Argumentos é um registro dessa breve fase de harmonia no underground carijó. Mais uma vez utilizando várias câmeras DLSR, a gravação aproveitou a participação de Lê Almeida numa edição do evento Ratos na Praça em 2015.

05. TUDO PODE ACONTECER, INCLUSIVE NADA

Lançado em 2013, o EP Zero concedeu a Filipe Alvim um despretensioso apelido: O maior hit-maker da Zona da Mata Mineira, título que ele ostenta e renega até hoje. O auge de sua carreira foi em 2016, ano que começou com uma série de shows em botecos do São Mateus com fãs cantando cada sílaba do repertório. Depois vieram compacto em vinil, aparições em vários blogs hypados e finalmente o disco Beijos. No embalo, Vida Sem Sentido faturou a estatueta de Videoclipe Revelação Nacional pela escolha do júri do Music Video Festival, prêmio que funcionou como uma Taça Guanabara na biografia do compositor botafoguense. Ainda impulsionado pelos beijos, Geléia participou da edição de 2018 do Festival Bananada.

Meticulosamente morno, misturando desolação, esperança e conformismo, o hit Vida Sem Sentido é uma faixa emblemática na carreira do “crooner da lombra”. Seguindo os preceitos de um compositor nascido em Cachoeiro de Itapemirim, os versos estão predestinados a fazer sentido para milhões de brasileiros. Influenciado pelas cenas contemplativas do cinema grego, o clipe apresenta Alvim apático e solitário em ambientes que são sinônimos de diversão. O decadente – e ainda imponente – Círculo Militar de Juiz de Fora abrigou a maioria das cenas. Imagens adicionais foram gravadas num motel de beira de estrada.

06. CADA CIDADE TEM O HANS DONNER QUE MERECE

Clipes em alta definição já não eram novidade em 2016. Desde então, roteiros medianos e cortes genéricos têm sido o suficiente para produzir clipes de baixo orçamento que imitam trailers de blockbuster. A popularização das câmeras DSLR elevou o nível técnico das produções audiovisuais, e o Inhamis apostou na animação 2D para se diferenciar num mercado aparentemente saturado.

The Wall’s Drama, da Basement Tracks, funcionou como laboratório de rotoscopia digital e despertou o interesse dos executivos da Warner Records, que encomendaram dois clipes para o bluseiro americano Gary Clark Jr., começando com The Healing em fevereiro de 2017. No mês seguinte, utilizando ferramentas de animação inventadas na Mesopotâmia, iniciou-se a produção de Shake, uma epopeia que será detalhada no próximo parágrafo.

Briefing: uma homenagem aos ícones do blues e do jazz. Para começar a brincadeira, o Inhamis editou um clipe com imagens reais da época de ouro desses gêneros, com takes que remetem aos anos 50 e ao lifestyle de Nova Orleans. Depois, exportaram e imprimiram frame por frame, que foram coloridos manualmente com aquarela, giz de cara, canetinhas e lápis de cor. Por último, fotografaram, digitalizaram e inseriram os frames no clipe, substituindo os footages que serviram como guia para as ilustrações. Assista ao making of de apenas 10 segundos.

Outros clipes em rotoscopia estão listados no site da firma. Dentro da panelinha da Pug Recs, teve Storm Song, faixa do EP de estreia da Fugere lançado em 2020.

07. KARAOKÊ SHOEGAZER

Desde 2013, quando a duplodeck entrou em hiato, Mr. Lopes tem sobreposto camadas de guitarra e agregado colaboradores em torno da Alles Club. No início de 2018, o clipe de Quanto Tempo reuniu garotas gastando a madrugada num karaokê. O roteiro reforça a universalidade dos versos e o potencial pop da canção, que, influenciada por Clube da Esquina e Roberto Carlos, é um notável ponto fora da curva no universo dream pop em que a banda geralmente é associada.

08. DESENHO PARA ADÚLTEROS

BAAPZ é o projeto solo de Pedro Baptista, baixista da Alles Club que tem viajado no tempo para compor canções dignas de serem tocadas ao longo das madrugadas por todas as rádios do Brasil. Lançado em 2019, o EP de estreia Remoto inaugurou um subgênero que tem sido classificado como futurismo à paisana. Versando sobre as distorções de tempo e espaço que ocorrem na cabeça de quem está apaixonado, as faixas falam sobre saudade, distâncias continentais que parecem poucos centímetros, a eternidade de uma subida do elevador, ansiedade e nostalgia. O clipe de Nervoso foi influenciado pela estética de desenhos para adultos do canal Adult Swim.

09. MOMENTO DE INFLEXÃO

Durante a pandemia, o diretor Francisco Franco achou que era hora de ir para Cuba estudar cinema, mas foi reprovado no exame psicotécnico. Em seguida, tentou ingressar num curso de gaffer na Sorbonne Université e teve seu nome barrado ao ser confundido com um ditador espanhol. Revoltado, adotou o pseudônimo François Havana e lançou o vídeo mais experimental de sua carreira.

Em 2021, a Alles Club gravou uma versão surf-gótica para Gnossienne No.1, peça composta pelo francês Erik Satie no final do século XIX. Explorando as infinitas possibilidades do estúdio Manchester, o clipe buscou inspirações na diva Madonna, no filme Trash Humpers e no diretor Arthur Penn. Saiba mais nesse post.

10. KRAUT DE POBRE, FREE JAZZ DE VAGABUNDO

Mais um projeto do prolífico Lê Almeida, the Brazilian answer to Robert Pollard, de acordo com uma reportagem superficial do The Guardian. Cru e sofisticado, de tonalidade ocre, o som do Oruã não se encaixa na paleta de cores artificiais de uma onda neopsicodélica cada vez mais dependente de investimentos em pedais e efeitos.

Os clipes do quarteto têm funcionado como registros de seus diferentes habitats. Cruz das Almas BA apresentou os rolês pelos Estados Unidos ao lado do Built to Spill. O curta-metragem Outros Santos / Essência Bruta foi rodado em Búzios, cidade cujas ondas têm trazidos bons ventos à Gran Noise Family. Em Malquerências, de 2019, o Inhamis cumpriu a arriscada missão de registrar a madrugada na baixada, onde o filho chora e a mãe não escuta.

Em 2022, finalmente chegou a vez dos arredores da Praça Tiradentes, no Centro do Rio, região conhecida como Saara durante o horário comercial e que ao anoitecer abriga os bailes do Escritório – quartel general da Transfusão e berço do Oruã, que ali emergiu em 2016 durante sessões de improviso.

O roteiro de Obrei Orei aborda a dor e a delícia de frequentar uma loja de discos. Abusando da saturação das cores, do neon e dos rastros nos frames, o vídeo é uma despretensiosa homenagem ao cineasta Wong Kar-Wai. No entanto, não se limita a replicar a obra do diretor chinês e permite que as animações em rotoscopia conduzam a narrativa visual por caminhos psicodélicos e bem-humorados. Nessa mistura entre o lixo da cultura pop e o que há de mais refinado na sétima arte, ninguém, nem mesmo os envolvidos em sua concepção, consegue delimitar até onde vai cada uma das muitas influências.

Essa retrospectiva é apenas um recorte dos clipes produzidos pelo Inhamis. Alguns trampos estão listados em inhamis.com e vários outros estão espalhados pelo Youtube. Ghost Sauce, Manchester Locadora e Ratazana Cineclube fazem parte do conglomerado Inhamis & Cia Ltda.

Essa playlist no Spotify é a melhor porta de entrada para o universo da Pug Records. Vale dizer que nem todos os clipes selecionados têm ligação com a gravadora que se aposentou em 2020, após 10 anos de trabalhos braçais. André Medeiros, Oruã, BAAPZ, Fugere, Filipe Alvim e Alles Club tiveram suas biografias não autorizadas publicadas no database.fm, o site mais plagiado do Brasil. Posteriormente, este post será ampliado e transformado num zine impresso da editora @papelote.press.

Eduardo Bento é ghostwriter da editora Papelote, cofundador do selo Pug Records, CEO da rádio proselitista database.fm, sommelier da revista JF Lanches e professor de bateria para jovens desprovidos de coordenação motora. Escreve por hobby ou por lobby e nunca fez curso de escrita criativa.