por José Hansen
Atualmente estamos vivendo uma verdadeira batalha no âmbito da representação e da representatividade em diversos cantos no mundo, temos como estopim a brutalidade policial nos Estados Unidos, que encontra coro em diversos pontos do globo. Países colonizados e colonizadores vivem ondas de protestos e discussões acerca do racismo, latente ainda nos dias de hoje. A representação do passado, por meio de monumentos, estátuas públicas e do patrimônio em geral, tem ganhado destaque nessas discussões, onde podemos acompanhar a retirada popular de alguns destes marcos. Aqui iremos passar por algumas categorias chave que pautam tais discussões, a fim de ampliar e participar do debate. Discussões são bem vindas, discursos de ódio serão ignorados
Sérgio Moraes / REUTERS
O que é patrimônio?
Palavras, ao fazerem parte do senso comum, costumam de certa forma serem esvaziadas de seu sentido primeiro ou passam de forma acrítica por nosso dia-a-dia, por isso é importante, ao iniciar uma análise nestes casos, passar por sua etimologia. Patrimônio, palavra de origem latina, tem sua origem em algo que é passado para as gerações futuras, desde o direito romano. Neste nosso caso específico, o termo diz sobre bens de diferentes naturezas, que passam por seleções e valoramento, processos de tombamento e acabam por entrar no rol do que deve ser legado para a posterioridade. Monumentos, objetos, edifícios, conjuntos urbanísticos e naturais são alguns exemplos possíveis, mas o saber-fazer, técnicas, festividades e modos de ver e habitar o mundo, tem ganhado espaço dentro da categoria “patrimônio” nas últimas décadas.
A escolha e os processos que levam algo a se tornar patrimônio se dão de diferentes formas, de acordo com cada caso e a legislação de cada país. No Brasil, anteriormente à Constituição de 1988, esse processo cabia, basicamente, apenas ao corpo técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico nacional (Iphan). Após o marco legal da constituinte que “vigora” nos dias de hoje, a participação popular ganhou alguma força neste processo, que ainda continua sob a tutela do Iphan.
Tais seleções estão longe de passarem sem influência ideológica e política, afinal de contas, não é possível viver sem ideologia e distante da política, o que cabe analisar é: a quem serve sua ideologia e sua política. Este exercício analítico é facilitado por uma breve reflexão sobre os monumentos ou estátuas que estão de pé na sua cidade. Quantas são de mulheres? Quantas são de negros? De indígenas? Não estamos falando aqui do idílico romantismo brasileiro e sim de um povo brutalmente massacrado há 520 anos. Passado este ponto, não podemos negar a hegemonia masculina, branca e de traços europeizantes na representação de nossas histórias no espaço público.
Felipe Rau / Estadão Conteúdo
Nosso país é formado por diferentes raças, subdivididas em diferentes grupos, longe de viverem em uma “democracia racial” como muitos cantam por aí. Mas caminhando por nossas ruas, é fácil esquecer disso e cair no canto das 3 raças, (salve Clara Nunes, por favor) só para também relembrar as diversas contradições no tema e dizer que nada é preto no branco, como pensam os que chamam o lulopetismo de comunismo e terraplanismos afins.
Fato é que tal hegemonia cultural nos bate na face todo santo dia, e que nada seria mais natural do que a disputa por espaço de representação entrar neste campo. Ao dar voz a alguns e silenciar tantos outros, o patrimônio, enquanto entidade que serve ao status quo, altera e molda algo muito poderoso no tabuleiro do jogo social, o direito à memória e, por consequência a auto-estima dos atores envolvidos.
Um povo com a cabeça levantada, uma população orgulhosa de seu passado, não se deixa dominar facilmente, exige soberania e tem em sua memória as ferramentas de luta para, não só se manter vivo, mas para batalhar por uma vida determinada de acordo com seus preceitos. O Brasil é um território rico em diversidade e ao mesmo tempo em silenciamentos, que podem ser vistos por aí, a torto e direito.
A escola burla a lei ignorando a História da África e sua diáspora, enquanto sabemos todos os fundamentos da Grécia Antiga. As populações originárias daqui são embebidas em preconceitos e passam a serem vistas como entrave ao desenvolvimentismo exacerbado, que destrói rios com lama e assassina diariamente nossos irmãos. Sendo assim, em um país que cerca de 64% de sua população não se declara branca, levando em conta que este fato advém de construção social, nos deparamos com outra proporção quando pensamos na representação de nossas histórias.
Os monumentos têm a função de rememorar o passado, de legar algo selecionado ao futuro, patrimônio no seu sentido estrito. Porém, estes não devem estar aquém de sua função social, um monumento não serve para nada se não se comunica com sua sociedade. Os motivos para algo assim ocorrer são inúmeros, como descaso, má conservação, falta de políticas apropriadas e etc… Mas no caso que aqui debatemos, de monumentos que representam o passado escravocrata e racista de forma acrítica é que o debate pega fogo, literalmente.
Museus queimados x Bandeirantes de pé
Enquanto temos importantes museus no Brasil, que se tornaram pilhas de cinzas, discutimos se devemos ou não manter de pé monumentos aos bandeirantes genocidas, só para dar um exemplo. Não quero aqui entrar em juízo de valor estético ou histórico e sim reiterar que a batalha já está a todo vapor, e a maioria do país, os que não se declaram brancos, está perdendo. O Museu Nacional perdeu acervos etnográficos de povos de nosso território, que já não existem mais. Essa gente foi assassinada pelo interesse branco colonizador e sua memória também, mais tarde, pelos mesmos. Podemos dizer o mesmo das coleções arqueológicas que arderam no recente incêndio do Museu de História Natural da Universidade de Minas Gerais.
Não gosto quando pensamos apenas em “descaso”, acho que deveríamos pensar em caso feito, intencionalidade e seleção da memória que deve se preservada. A final de contas, quem quer fortalecer a memória, e por conseguinte a força das populações indígenas brasileiras quando o verdadeiro interesse está a expropriação e exploração de suas terras? Vivemos em terra arrasada. Neste ponto devo fazer uma pausa para ressaltar que existem diversas ações extremamente positivas neste campo, mas agora é hora de revolta, chegará a hora de destacar nossas comunidades fortalecidas e casos fortuitos.
Tânia Rego / Agência Brasil
Luiz Claudio Barbosa / Estadão Conteúdo
Voltando ao foco principal, mais uma vez, nada mais natural do que a derrubada de monumentos, como podemos acompanhar em boa parte dos principais veículos midiáticos mundo a fora. Alguns críticos defendem o patrimônio e a representação dos indefensáveis ferrenhamente em seus textos, enquanto outros relativizam e tentam amortecer a onde que vem de encontro as estátuas espalhadas pelas cidades. Digo estátuas pois são esvaziadas de seu sentido de memória original, a não ser que você se identifique abertamente com racismo e temas afins, infelizmente esse pessoal tem colocado a cara na rua, e não está apanhando como deveria, enfim…
Os monumentos ganham diferentes conotações ao longo do tempo, isso pode e deve ser levado em conta, mas acreditar que uma placa ao lado de um monumento de bronze, tem poder suficiente para questionar, apaziguar ou politizar, como constatei em uma rápida surfada nos grupos de especialistas do patrimônio nas redes sociais, talvez seja querer tapar o sol com a peneira. A força estética e semiológica que estes exercem por si só não deve ser menosprezada. Cito aqui como exemplo, também dos nomes que as vias urbanas recebem, exaltando ditadores e martirizado os que sofreram nas mãos ensanguentadas destes. O nome do elevado Costa e Silva, mudou para Presidente João Goulart e não para “elevado Costa e Silva de forma crítica”.
As possibilidades de ação e reflexão são inúmeras, mas, acredito eu, que devem passar por uma ressignificação estética tão potente quanto o monumento. Que tal arrancarmos as cabeças dos bandeirantes de Brecheret em São Paulo? Aí sim acredito que começaremos a politizar os monumentos. Nossa sociedade precisa de mudanças drásticas, nossos monumentos também. Algo que está enraizado tão profundamente em nossa sociedade, como o racismo, deve ser cortado pela raiz, e isso não vai acontecer sem traumas. É como arrancar um dente siso, dói, incha e deixa um buraco no lugar, mas nos lembra sempre que não precisávamos daquele dente, pelo contrário, ele só nos fazia mal.
Já os museus, esses sim têm a capacidade de ressignificar a memória de forma discursiva. Estas instituições por meio da ordenação, disposição, textualidade e mediação, tem a potência necessária para politizar e discutir o patrimônio. Lembro aqui que os museus não vivem em um mar de razão, pelo contrário, tem sofrido, mais do que nunca, ainda bem, com as chagas do colonialismo, representados pelos patrimônios saqueados que são suntuosamente exibidos em seus nobres salões.
Rovena Rosa / Agência Brasil
Enfim…
O fato de retirar ou não as estátuas das ruas, é um debate complexo, que pode ser visto por diversos ângulos. Agora, acredito que a onda popular que clama por sua destruição, retirada ou ressignificação “extrema” não pode ser ignorada, muito menos cair em um discurso reducionista sob a égide do “vandalismo”. A vontade de quem sofre o racismo diariamente e tem nestes símbolos uma marca dolorida, não pode ser considerada ignorância ou, como li por aí, identitarismo autoritário.
O anacronismo, de fato, ocorre em algumas análises e ações feitas mas, é caro lembrar, que a representação do passado passa, necessariamente pelo hoje e se o patrimônio sempre cumpre uma função política e ideológica, que essa seja democrática, inclusiva e alinhada com os preceitos de uma sociedade justa. Reitero aqui, para alguém ligado ao patrimônio, este tema é mais que espinhoso pois não aprendemos outra coisa senão conservar, porém, acredito eu, as vezes precisamos excluir algumas coisas para nos reorganizar e enxergar de maneira límpida as funções do patrimônio.
Gostou? Não? Que pena…
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